segunda-feira, 28 de setembro de 2015

mulher é tudo louca


A casa acordava de manhã com ela. Do lado da cabeceira, nenhum livro, mas o rádio de pilhas. O locutor do programa dizia a todo o tempo a hora certa. Ela ficava ouvindo as modas de viola e ajeitando o corpo para o acordar. O mesmo corpo da véspera ou teria se modificado um tanto? As dores nas articulações pareciam piorar, mas à medida que ela fosse se agitando para dar conta de todos os afazeres, elas se aquietariam. Os olhos vasculhavam um passado enorme de filhos e filhas e netos e a eterna luta pela sobrevivência. Era uma mulher que sobrevivera. Quantas alegrias seu corpo havia realmente experimentado? Ela se pertencia a si mesma? Talvez, nesses gestos mínimos que ressalvavam hábitos, ela se pertencesse a si mesma. Ao ouvir o radinho de pilhas logo cedo de manhã, quando todos dormiam o último sono, ela se sentia um pouco livre. Mas o primeiro que abrisse os olhos e pronunciasse a palavra “mãe” e com menos violência, a palavra “vó”, já instalava sobre ela um poder de deixar de existir e passava a ser a que servia, a que respondia sobre onde estavam os objetos mais banais, ou qual seria o cardápio da noite, e com as orelhas rasgando de dor, naquela manhã ela deveria responder a um inquérito brutal à filha mais velha: Como que o azeite já tinha acabado se da última vez que fizera mercado vieram três litros de azeite para casa? E se ela, a mãe, não tinha noção de onde saía o dinheiro. Os olhos parados no meio da cara, olhariam o rosto furioso da filha, e talvez trouxessem a exata sensação de quando ela escorregara de dentro de seu ventre para o mundo, resgatada pelas mãos de uma parteira, igualmente mulher, igualmente banida das importâncias de ser e existir no mundo. Ela olharia os olhos da filha e veria a boca se mexendo como uma máquina de produzir gritos. Talvez que a filha estivesse infeliz, sim era isso. A infelicidade modelou aquelas palavras brutais e aquele semblante severo em suas feições. Antes era só uma criança. Era só mais uma mulher, uma outra entre tantas filhas. E sua infância havia sido de uma rudeza tão gritante que os mínimos momentos de beleza eram todos vividos, também, de modo clandestino. A filha talvez não se pertencesse a si mesma. Havia sido raptada pelo mundo. A filha mais velha, essa mulher do mundo, atendia a chamados urgentes e resolvia questões urgentes e ganhava o dinheiro para suprir as necessidades da casa e se dava ao direito de berrar logo cedo de manhã com a mãe porque isso a fazia se sentir bem, pronta para o mundo. Pronta também para receber os homens que compartilhavam do mundo com ela. A mãe talvez não pensasse isso, mas sabia que havia um propósito sutilmente preparado para justificar aquela gritaria logo cedo. Ela estava se fortalecendo. Derrubar um pai ou uma mãe, derrubar a moral de um filho ou de alguém a quem muito se ama logo cedo de manhã, gera uma força violenta para enfrentar o mundo. Sim, talvez fosse isso. A mãe teria que compreender. E a filha sabia que a mãe compreenderia. À noite, quando voltassem, nem iriam mais pensar nisso. E antes de sair para o mundo, ela passaria o batom diante do espelho, arrumaria o cabelo do jeito como deve ser, sem qualquer pensamento, teria certeza de seu poder de mulher no mundo, pois se havia destruído a mãe com algumas palavras, o que não poderia destruir se viesse diante dela, pra cima dela ao longo do dia? Seria isso? A mãe sofria quieta, lembrando-se de que, realmente, daquela vez foram três litros de azeite (daquele da marca boa) que ela havia trazido. E agora o último estava vazio e por isso ela anotou na lista de compras, com a letra que usava com mais frequência para esses afazeres, bilhetes, recados, e quando muito, em alguma ocasião, enviava um cartão de aniversário para algum parente distante que ainda morava lá de onde eles, os retirantes, vieram; e também as felicitações de Natal e Ano Novo. Mas ela deveria fazer a lista, antes de deitar, ela deveria ter feito a lista de compras e deixado em cima da mesa. Por isso ela anotou, com dificuldade, pois não gostava muito de usar esferográfica, anotou tudo o que faltava, entre barras de sabão, detergente, desinfetante: “azeite”. Ela alçou o avental por sobre a cabeça como quem se preparava para o dia, aquele longo dia de tantas roupas para lavar e louça e os netos menores que ela também devia alimentar. E quando estava lá, terminando o café, a filha sentada à mesa, fumando, ela enxugou as mãos e apresentou a lista à filha. Estava pronta a lista, sentia-se até orgulhosa de ter feito tudo na véspera, de ter adiantado umas coisas, pois logo mais à tarde ela sairia com a neta até o centro. Era essa a sua função, dar conta da casa, manter a casa e o fogo em movimento para que houvesse comida e para que as roupas de dormir e vestir estivessem limpas. Apenas isso. Ali estava tudo, palavra por palavra; e entregou a lista para a filha, enquanto servia o café quente na xícara da filha. Com o cigarro aceso e uma xícara de café cobrindo a metade da cara, a filha leu a palavra “azeite”. E a partir daí o inferno com os seus mil braços sinistros tomou o espaço daquela cozinha numa plácida manhã que havia nascido simples e como as manhãs de sempre. O sol pela fresta das janelas fazendo aquela partitura sutil na parede do quarto. O corpo do marido ao lado, envelhecendo e enfraquecendo cada dia mais. A moda de viola entrecortada pelo aviso da hora certa. Tudo igual até o momento da leitura daquela palavra. Logo naquele dia em que ela havia se preparado para ir ao centro da cidade tirar o retrato para fazer, finalmente!, a carteira de idosa e poder com isso ter mais liberdade para suas coisas quando quisesse, visitar alguém, ir até o cemitério, uma feira, o que fosse. Logo naquele dia que era justamente véspera da neta com a mão machucada voltar pra casa porque já estava ficando boa a cicatriz e não havia mais necessidade de ela estar ali na casa. Naquele dia, aquela confusão, aqueles gritos por causa de um litro de azeite. Não tinha o que dizer. Olhou para filha como se pedisse desculpas. Desculpas por estar ali ainda. Por não ter morrido. Desculpas por ser ela a dar a notícia do azeite que faltava, mesmo que soubesse o tanto de dinheiro esbanjado em cervejas e cigarros enquanto elas varavam a noite jogando o carteado. E nas viagens com os amigos em que a filha fazia questão de bancar a passagem dos que não podiam pagar, porque tinham uma mãe doente em casa. Desculpas, ela pedia, desligando o fogo pois a água já havia fervido e era bom também não gastar tanto gás. No cinzeiro, dois cigarros com a marca de batom quedavam-se quietos, assustados. Os gritos estremeceram as paredes. Os outros filhos passavam pelo corredor apressados, nem pensaram em café, pois que poderia sobrar alguma chispa pra cima deles. Saíam da casa como se escapassem de uma guerra. Nenhum para levantar a voz em defesa da mãe, afinal era só a mãe e a mãe já estava acostumada a tudo isso. De vez em quando isso acontecia, devia ser a tpm da filha que fazia ela acordar com a macaca. Vá saber. As mulheres são assim mesmo. Mulher é tudo louca.






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