A casa acordava de manhã com ela.
Do lado da cabeceira, nenhum livro, mas o rádio de pilhas. O locutor do
programa dizia a todo o tempo a hora certa. Ela ficava ouvindo as modas de viola
e ajeitando o corpo para o acordar. O mesmo corpo da véspera ou teria se
modificado um tanto? As dores nas articulações pareciam piorar, mas à medida
que ela fosse se agitando para dar conta de todos os afazeres, elas se
aquietariam. Os olhos vasculhavam um passado enorme de filhos e filhas e netos
e a eterna luta pela sobrevivência. Era uma mulher que sobrevivera. Quantas
alegrias seu corpo havia realmente experimentado? Ela se pertencia a si mesma?
Talvez, nesses gestos mínimos que ressalvavam hábitos, ela se pertencesse a si mesma. Ao ouvir o radinho de pilhas logo cedo de manhã, quando todos dormiam o último sono,
ela se sentia um pouco livre. Mas o primeiro que abrisse os olhos e pronunciasse
a palavra “mãe” e com menos violência, a palavra “vó”, já instalava sobre ela um
poder de deixar de existir e passava a ser a que servia, a que respondia sobre
onde estavam os objetos mais banais, ou qual seria o cardápio da noite, e com as
orelhas rasgando de dor, naquela manhã ela deveria responder a um inquérito brutal à filha mais
velha: Como que o azeite já tinha acabado se da última vez que fizera mercado vieram três litros de azeite para casa? E se ela, a mãe, não tinha
noção de onde saía o dinheiro. Os olhos parados no meio da cara, olhariam o rosto
furioso da filha, e talvez trouxessem a exata sensação de quando ela escorregara de dentro de
seu ventre para o mundo, resgatada pelas mãos de uma parteira, igualmente
mulher, igualmente banida das importâncias de ser e existir no mundo. Ela
olharia os olhos da filha e veria a boca se mexendo como uma máquina de produzir
gritos. Talvez que a filha estivesse infeliz, sim era isso. A infelicidade modelou
aquelas palavras brutais e aquele semblante severo em suas feições. Antes era
só uma criança. Era só mais uma mulher, uma outra entre tantas filhas. E sua
infância havia sido de uma rudeza tão gritante que os mínimos momentos de beleza
eram todos vividos, também, de modo clandestino. A filha talvez não se pertencesse a
si mesma. Havia sido raptada pelo mundo. A filha mais velha, essa mulher do mundo, atendia a chamados urgentes e resolvia questões urgentes e ganhava o
dinheiro para suprir as necessidades da casa e se dava ao direito de berrar logo cedo de manhã
com a mãe porque isso a fazia se sentir bem, pronta para o mundo. Pronta também
para receber os homens que compartilhavam do mundo com ela. A mãe talvez não
pensasse isso, mas sabia que havia um propósito sutilmente preparado para
justificar aquela gritaria logo cedo. Ela estava se fortalecendo. Derrubar um
pai ou uma mãe, derrubar a moral de um filho ou de alguém a quem muito se ama
logo cedo de manhã, gera uma força violenta para enfrentar o mundo. Sim, talvez fosse isso. A mãe teria que compreender. E a filha sabia que a mãe compreenderia. À noite, quando voltassem, nem iriam mais pensar nisso. E antes de sair para o mundo, ela passaria o batom
diante do espelho, arrumaria o cabelo do jeito como deve ser, sem qualquer pensamento,
teria certeza de seu poder de mulher no mundo, pois se havia destruído a mãe
com algumas palavras, o que não poderia destruir se viesse diante dela, pra cima dela ao longo
do dia? Seria isso? A mãe sofria quieta, lembrando-se de que, realmente,
daquela vez foram três litros de azeite (daquele da marca boa) que ela havia
trazido. E agora o último estava vazio e por isso ela anotou na lista de
compras, com a letra que usava com mais frequência para esses afazeres, bilhetes, recados, e quando muito, em
alguma ocasião, enviava um cartão de aniversário para algum parente distante
que ainda morava lá de onde eles, os retirantes, vieram; e também as
felicitações de Natal e Ano Novo. Mas ela deveria fazer a lista, antes de deitar, ela deveria ter feito a lista de compras e deixado em cima da mesa. Por isso ela anotou, com dificuldade, pois não gostava muito de usar esferográfica, anotou tudo o que faltava, entre barras de sabão,
detergente, desinfetante: “azeite”. Ela alçou o avental por sobre a cabeça como quem se preparava para o dia, aquele longo dia de tantas roupas para lavar e louça e os netos menores que ela também devia alimentar. E quando estava lá, terminando o café, a filha sentada à mesa, fumando, ela enxugou as mãos e apresentou a lista à filha. Estava pronta a lista, sentia-se até orgulhosa de ter feito tudo na véspera, de ter adiantado umas coisas, pois logo mais à tarde ela sairia com a neta até o centro. Era essa a sua função, dar conta da casa, manter a
casa e o fogo em movimento para que houvesse comida e para que as roupas de
dormir e vestir estivessem limpas. Apenas isso. Ali estava tudo, palavra por palavra; e entregou a lista para
a filha, enquanto servia o café quente na xícara da filha. Com o cigarro aceso e uma xícara de café cobrindo a metade da cara, a
filha leu a palavra “azeite”. E a partir daí o inferno com os seus mil braços
sinistros tomou o espaço daquela cozinha numa plácida manhã que havia nascido simples e como as manhãs de sempre. O sol pela fresta das janelas fazendo aquela
partitura sutil na parede do quarto. O corpo do marido ao lado, envelhecendo e
enfraquecendo cada dia mais. A moda de viola entrecortada pelo aviso da hora
certa. Tudo igual até o momento da leitura daquela palavra. Logo naquele dia em
que ela havia se preparado para ir ao centro da cidade tirar o retrato para
fazer, finalmente!, a carteira de idosa e poder com isso ter mais liberdade para suas coisas quando quisesse, visitar alguém, ir até o cemitério, uma
feira, o que fosse. Logo naquele dia que era justamente véspera da neta com a
mão machucada voltar pra casa porque já estava ficando boa a cicatriz e não
havia mais necessidade de ela estar ali na casa. Naquele dia, aquela confusão,
aqueles gritos por causa de um litro de azeite. Não tinha o que dizer. Olhou
para filha como se pedisse desculpas. Desculpas por estar ali ainda. Por não
ter morrido. Desculpas por ser ela a dar a notícia do azeite que faltava, mesmo
que soubesse o tanto de dinheiro esbanjado em cervejas e cigarros enquanto elas
varavam a noite jogando o carteado. E nas viagens com os amigos em que a filha
fazia questão de bancar a passagem dos que não podiam pagar, porque tinham uma
mãe doente em casa. Desculpas, ela pedia, desligando o fogo pois a água já
havia fervido e era bom também não gastar tanto gás. No cinzeiro, dois cigarros
com a marca de batom quedavam-se quietos, assustados. Os gritos estremeceram as
paredes. Os outros filhos passavam pelo corredor apressados, nem pensaram em
café, pois que poderia sobrar alguma chispa pra cima deles. Saíam da casa como
se escapassem de uma guerra. Nenhum para levantar a voz em defesa da mãe,
afinal era só a mãe e a mãe já estava acostumada a tudo isso. De vez em quando
isso acontecia, devia ser a tpm da filha que fazia ela acordar com a macaca. Vá
saber. As mulheres são assim mesmo. Mulher é tudo louca.
O Universo & Outras Ficções, de Carlos Alberto Machado.
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Uma das principais características de *O Universo & Outras* *Ficções*, de
Carlos Alberto Machado (C.A.M.), com edição de Companhia das ilhas, no
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Há 5 anos
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