Tudo o que não for ficção é a sobra da realidade...
Aconteceu porque estávamos lá e teria acontecido com quem estivesse lá – desde que fosse mulher. Nunca mais se falou sobre isso. Ficou enterrado em algum lugar em nossas memórias. Também nunca mais nos falamos depois disso. Eu lamento, porque não foi nossa culpa.
Fui
encontrar você à tarde num café perto daquela praça onde fica o monumento a
Camões. Havia um café muito bom por ali, talvez ainda exista, mas agora não
costumo andar por aqueles lados. A luz da tarde de setembro estava em harmonia
com a minha vontade de te ver e de conversar contigo. Eu admirava muito o seu
jeito de ser e se vestir e as coisas que falávamos sobre poesia eram reais,
pois a gente vivia de ler livros e acreditar no que líamos e querer talvez
fazer algo que comunicasse pelo menos um mínimo da substância poética que os grandes
autores haviam deixado entre as páginas. Você sempre me pareceu uma boneca de
louça. A pele muito branca e delicada, quase quebradiça. As músicas que você
ouvia e os trechos de poemas em francês ou inglês ou alemão que você recitava
para pontuar alguma coisa que havíamos dito saíam de ti de modo muito natural,
sem qualquer vestígio de pedantismo. Ao teu lado, eu parecia um replicante que
poderia a qualquer momento levar um tiro do caçador de androides; sempre
respirei mal, um desespero de achar que a felicidade pode ser cortada ao meio
e, separadas as duas partes, eu cairia naquele fosso entre o nem feliz nem
infeliz, esperando até o próximo momento de felicidade. E aquele nosso encontro
era o meu próximo momento de felicidade. Não tinha a ver com sexo, era de outra
natureza o que movia meu afeto em relação a você. A tarde sabia disso; as
folhas caíam lentas dos galhos até o chão e, nesse percurso, eu esboçava sorrisos
e ia tomando uns goles quentes do chá e pensando que tudo havia sido previamente
programado por algum oráculo. E você, com sua roupa inusitada, parecia ter
saído de uma capsula, vinda direto do século XIX quando há pouco tempo teria
trocado algumas palavras com Emily Dickinson; era uma imagem suave para os meus
olhos. Os meus circuitos eletrônicos vibravam, ainda que de vez em quando eu
costumasse olhar para trás só para confirmar se Rick Deckard não estava no meu
encalço. O melhor de tudo isso é que eu não estava apaixonada por você. Não
havia nada que distorcesse a imagem. Você era exatamente você; e isso era
incrível. Essa união fraterna de te ouvir e saber que uma criatura singular
estava ali comigo. As luas negras de teus olhos boiando no céu branco e os
cílios em volta, as asas do nariz movendo-se leves no meio do rosto enquanto
você falava; e logo abaixo uma boca pequena meio nipônica, mas de uma origem
que eu não conseguia identificar direito pois para mim você pertencia mesmo ao
universo de Jonathan Viner; quando alguém te convidava para sair, você se
descolava de uma caixa ou de um quadro de Viner com a exata roupa que queria
vestir aquele dia.
Então, depois de termos conversado
e tomado o chá eu perguntei se você não tinha interesse em ir para o evento de
literatura que estava acontecendo na cidade. Todos estariam lá. Todos? Que
todos? Ah, as pessoas que escrevem. Os poetas, os escritores. A gente fica só
um pouco. Talvez nesse momento eu tenha ouvido tocar os sinos da igreja que
ficava perto dali. Talvez fosse só a música de perseguição que começava a
escorrer na narrativa daquele dia, indicando uma mudança na vibração no mundo
dos replicantes. Indicando que, se fôssemos espertas, ficaríamos ali
conversando mais um pouco e depois iríamos embora cada uma pro seu destino.
Escuta, nós também somos poetas. Nós temos que interagir, participar desses
eventos, se não ninguém nunca vai ler o que a gente escreve, eu insisti. Eu
tenho vontade de ir logo morar em São Paulo. Aqui me parece tudo tão monótono;
quando acontece alguma coisa relevante é bom aproveitar, pois parece que não
vai se repetir. É uma cidade inaugural. As coisas não têm muita continuidade. E
quando converso com as pessoas sobre ideias e projetos, elas me olham como se
eu fosse uma garota que não tem muita noção da realidade. As pessoas não me
levam a sério aqui. É isso que eu acho. Você acha isso mesmo?, eu perguntei.
Não é o que eu penso. Gosto muito dos teus poemas e acho que eles traduzem
muito bem tua personalidade. É que o mercado editorial é difícil mesmo. E aqui
ele praticamente não existe. Então você me disse que estava conversando com um
poeta do Rio de Janeiro, que estavam pensando em se encontrar em novembro, mas
não no Rio, em São Paulo. E nisso, claro, eu já imaginei o quão difícil deve
ser dois poetas conviverem e se relacionarem. Logo eu que sempre me relacionava
com pessoas que pouco ou nada tinham a ver com literatura; mas que mesmo assim
eram excelentes pessoas.
Fomos
andando até o Memorial da Cidade, onde aconteceria o evento. No caminho eu
fiquei com receio de encontrar algum dos meus amigos chapadões, pensando que morreria
de vergonha se ele começasse a conversar coisas estúpidas com você e tentasse jogar
charme pra cima de você. Acho que por um tempo vivi isso. Essa coisa de querer
preservar uma atmosfera já instaurada e não deixar que ela se perturbe por
nada. Eu tinha medo de que, a partir dos meus amigos, pelos menos dos mais
malucos, você descobrisse que eu não tinha muito controle sobre minha vida. Mas
era tudo bobagem, pois eu tinha controle total sobre minha vida, a ponto de
quase enlouquecer. É que eu sentia que não dava muito certo isso de misturar as
turmas. Talvez os meus amigos também pensassem assim – tanto que eles raramente
se misturavam; só quando rolava naturalmente. Descobrir alguém novo, alguém que
tinha uma realidade completamente diferente da minha, fazia com que eu já me isolasse
do grupo e fechasse completamente com esse novo amigo me esquecendo dos outros
por um tempo. Até eu sacar que esse novo amigo estava fazendo o mesmo e nisso nós
quebrávamos a regra e juntávamos as turmas e todo mundo podia ser bem idiota e
feliz tudo junto. Não éramos pedantes. Éramos só nós mesmos. Frágeis seres
contaminados de poesia e memórias juvenis. Eu queria no fundo era ser uma
adulta. Se é que você me entende.
Quando
chegamos no Memorial a conversa já havia começado. Eu fui olhando as cabeças e,
realmente, o lugar estava cheio de poetas. Me deu uma sensação estranha de que
eu queria estar numa outra cidade de um outro país, onde eu não conhecesse
ninguém e estivesse ainda aprendendo o idioma. A minha ideia de escrever
era oposta a ideia de multidão, encontros literários, entrevistas para o jornal
da cidade, autógrafos. Nada disso eu achava que tinha a ver com literatura.
Portanto, ficava triste quando estava nesses lugares. Como se aquilo
representasse algo que ferisse o literário, pois o “literário” estaria acima do
banal e corriqueiro no mundo. Menos sexo, claro. Pois era farto o uso da
literatura & outras artes para esses fins. Poemas e filmes, por exemplo,
eram comentados e compartilhadas com o fim único de seduzir alguém – a covardia
básica do ser humano; não é a toa que a Mônica queria ver o filme do Godard. Essa
era eu, sozinha em meus pensamentos como numa bolha imaginativa. O que me dava
um certo tédio. Você estava ao meu lado. Sua estatura pequena e inteira, com os
gestos exatos adquiridos até aquele momento; as cores da tua maquiagem quase
teatrais – não era certo que aparecêssemos juntas, pensei. Talvez aquilo fosse
meio que queimar tua pose. Eu era a escritora louca. Suicida. A que berrava os
textos como um jato de vômito. E que, sim, usava a literatura desesperadamente
para tentar seduzir quem quer que fosse. A escritora que ficava muito puta por
ser sempre os homens os que eram considerados nos anais literários, feiras,
jornais, revistas, eventos – tudo o que destruía a literatura como substrato
real do real. E aqui havia uma contradição – eu não achava isso importante para
a coisa, mas era de fato a parte profissional da coisa. Se alguém quisesse se
tornar escritor, o limite além do texto era aquele das feiras, das publicações,
dos eventos. Mas cada vez mais eu via que a plateia ia se enchendo de
escritoras que assistiam aos eventos e escritores que eram o centro do evento.
Então aquilo era mesmo de encher o saco. O ruim era alguém vir dizer
que nós produzíamos literatura feminina. Literatura feminina é o caralho! –
grito e coquetel molotov na velha porta de correr da livraria do C****. Isto
posto, eu vi que queria mesmo era estar em outra cidade de um país cuja língua
eu não dominasse. Não sabia que isso já estava acontecendo; aqui eu estava em
uma cidade de um outro país cuja língua e códigos eu não dominava. Por isso
essa tensão permanente do carinha que chega diante do porteiro kafkiano e
espera décadas até constatar, pela autoridade, que ali ele não poderá entrar. Mas
antes que o porteiro dissesse isso eu me levantaria da cadeira e explicaria pra
ele que eu queria só pegar um sonho no carro do sonho que estava passando.
Frase (ambígua) que define a cidade.
Estávamos
sentadas lado a lado; você quieta ouvindo o tema, talvez pensando, talvez gostando;
e eu imersa em uma rede de pensamentos paralelos. Depois do “evento” alguns
poetas vieram falar com você e querer saber o que você andava escrevendo. E se
a gente não queria sentar na mesa deles para beber alguma coisa. Você olhou pra
mim silenciosa como se perguntasse O que você acha? Eu pensei que tudo bem. Não
tinha problema nenhum. Que problema poderia haver? Éramos todos escritores e
poetas e poderíamos sentar na mesma mesa de bar e falar sobre literatura e
sobre coisas superiores, coisas do espírito. Ãhan!
No
bar eu já divisei Deckard sentado em silêncio numa mesa distante da que todos
estávamos. Ele fazia o tipo quieto e concentrado tomando seu whisky e de vez em
quando trocávamos olhares como quem combina uma senha. Você me dá uma trégua por
enquanto só para eu atravessar essa noite aqui com essas pessoas e amanhã pode
começar novamente a perseguição, ok? Nesse intervalo de olhares eu ativei a
técnica de ouvir uma música bem alto até que o silêncio explodisse dentro da
minha cabeça e então olhei para todos ali, estudei as expressões, a intensidade
do brilho de cada olhar, os gestos das mãos e a medida térmica que o corpo ia
produzindo a ponto de deixar o rosto vermelho e um pouco inchado. Na mesa éramos
em uns quinze; inclusas duas esposas de poetas, que estavam ali um tanto
constrangidas com sua inútil figuração, justamente por perceberem que os seus
respectivos maridos se tornavam outras pessoas quando interpretavam
publicamente o papel de poetas. Além dessas duas, eu e você – as outras. Eu te
olhei e dessa vez te vi como uma peça de um antiquário diante da qual todos
davam lances, levantavam as mãos para cima e giravam o braço, excitando algum
verso, claro que do Leminski, com a atenção toda voltada para você – a boneca
que despertava nesses homens uma espécie de competição. Não para ler ou
conhecer o que você escrevia. Mas para estraçalhar você com unhas e dentes e
paus na primeira oportunidade. Antes de poetas, eram todos machos. Fiquei um
pouco triste, pois você não pareceu entender o que estava acontecendo. E você
estava agindo naturalmente. Sua mão pequena e branca segurava uma taça com um
drink desses fracos que ao se repetirem com muita frequência conseguem derrubar
um leão. Eu queria tirar você dali. Eu queria dizer Vamos embora, aqui não está
bom. Mas já que eu estava ali a paisana e que minha condição fake de androide
não estava dando muito na cara, decidi me humanizar. De que lado eu poderia
entrar na disputa? Você era o objeto de desejo dos poetas ali, eles estavam em
plena atividade de luta, cada um oferecendo o que melhor podia nessa briga. Eu
passei para o lado de quem tenta desarticular as ofertas. Considerando que a minha meiguice é algo que
aparece a cada aproximação de um insólito cometa, adotei a postura sarcástica e
mordaz como forma de defesa. Era assim que geralmente era.
Seu
rosto adquiriu uma expressão nova. Achei que você já havia escolhido, entre os
pretendentes, aquele que lhe aqueceria o coração – com perdão do fonema
gutural. Deckard ainda estava lá; quando eu olhei, ele retirou o copo do rosto e
fez aquele risinho de canto de boca e o olhos quase fechados. Eu entendi o que
ele queria dizer. Era mais fácil perseguir replicantes do que cuidar da
integridade física de uma poeta ingênua. Dali em diante eu vi que não poderia
ir embora sem você. Nesse momento, chegou o barão.
O
barão usava luvas. Bem vestido. Sóbrio. O que lhe dava uma vantagem perante os
demais. Já passava das duas e eu tinha esperança de que você dissesse Vamos
chamar um táxi. Mas você não disse. E o poeta menor (porque mais jovem) foi
sentar-se ao seu lado. E eu vi que isso não era uma boa coisa.
Enfim,
o barão disse Que tal se fôssemos todos para o meu bar? Eu tenho um Porshe, eu
tenho posses e uma filha deliciosa que mora no coração de Manhattan. Conhece
Manhattan. Ou pelo menos já viu Manhattan? Foi pra mim que ele virou e
perguntou. Sim. Inclusive eu sou a versão feminina do Woody Allen. O comentário
parece não ter sido muito bem recebido. Eu só queria fazer uma piada; uma piada
antiga, aliás, porque os meus amigos todos falavam isso de vez em quando. O
problema é que o barão grudou em mim, enquanto o poeta menor grudou em você. E
depois que ele cochichou alguma coisa no teu ouvido eu vi você concordar que
não era uma má ideia se fôssemos todos para o bar do barão. Já estaria fechado
e poderíamos aproveitar os melhores drinks. I
don´t know the question, but sex is definitely the answer ... Virei para o lado e vi que Deckard não estava mais ali. A mesa restava
vazia sem vestígios de que alguém a ocupara antes. Talvez o origami de um
cordeiro tivesse sido largado ali. Senti muita solidão nessa hora. Vi para onde
as coisas estavam indo e não pude recuar. Aquelas alturas éramos só nós duas de
mulheres e mais quatro homens que queriam nos tirar dali, de um lugar público,
para nos levar para outro lugar, fechado e território deles. Eu já sabia como era
isso. Outras vezes já havia presenciado esse tipo de cilada. Mas você estava
contente. Seu rosto estava rosado e seus lábios muito vermelhos. Eu pensei em
Branca de Neve. Pensei na minha namorada que devia estar em casa dormindo
depois de ter encarado plantão punk. Lembrei de olhar
para o celular e vi que tinha uma mensagem de Boa noite, amor. Amanhã a gente
se fala. Fiquei mais triste ainda. Então era isso. Decidi que ia com a boneca
até o fim. Sim, pois pra mim você era uma boneca que havia saído da caixa ou de
um quadro de Viner para um passeio. E provavelmente, depois daquela noite, não
voltaria mais a se amarrar com aqueles pequenos grampos. Mas eu confiei no
futuro e pensei que afinal éramos todos pessoas elevadas. Não iria acontecer
nada.
Chegamos
ao bar do barão. Já passava das três, a noite estava fria e de nossas bocas
saía aquele vapor branco quando expirávamos. O poeta menor mantinha o braço
enlaçado em volta do seu ombro. O barão enfiou a chave na fechadura e, antes de
dar a volta completa, tornou o corpo curvado para todos nós e abriu um sorriso
de vilão como se estivesse prestes a entrar na Fantástica Fábrica de Chocolates.
Do que se trata, afinal? Eu pensei. Que coisa mais teatral. Que sujeito mais
teatral. Ele foi entrando e ficou do outro lado do balcão junto com o poeta sedutor. Do lado de cá ficamos eu e
o poeta-pop, de quem não é necessário falar. De onde eu estava via suas costas
e metade do rosto do poeta menor, que não parava de mexer a cabeça de modo
lento enquanto sussurrava em seu rosto sabe-se lá quais frases soltas. Desta
vez, sem sombra de dúvida, você me pareceu a Betty Boop.
O
barão foi abrindo umas garrafas de rótulos lindos que ele virava para nós
explicando a origem da bebida, teor alcoólico e composição. Eu achei aquilo
educativo. Ele dispôs quatro copos pequenos sobre o balcão e foi servindo as
doses. Parece que nessa hora eu ouvi um trovão e pensei que o dia seguinte já
estava nascendo e nós ainda estávamos ali. E você, Woody Allen, também fica
excitada quando bebe? Os dois poetas ficaram sérios, ajeitaram os óculos e
dirigiram o olhar para mim esperando uma resposta. Era um time de três contra
uma. Eu não sabia o que dizer. Me dei um tempo para responder melhor. Tomei
mais um gole e percebi que você e o poeta menor não estavam mais na mesa.
Tinham simplesmente sumido do meu campo de visão. Você tem água? Preciso tomar
um pouco d´água. Se não vai me dar teto preto. Que é isso? Água? A gente mal
começou a brincadeira. Como é que você pode pedir água. Nada disso. Ainda tem
muito sabor pra ser experimentado aqui.
Escuta,
eu preciso tomar água, é sério. E daqui a pouco a gente precisa ir pra casa.
Que é isso, deixa disso. Relaxe. Estamos todos entre amigos. Mas você é um
amigo com peitinhos. Não quer mostrar pra gente seu potencial poético? Os dois
poetas riram e se alinharam com o inimigo. Eu estava sozinha no campo de
batalha. E em algum lugar do bar você e o poeta menor se escondiam. Escute, não
é porque você fodeu a buceta da tua filha que pode ser indelicado com as bucetas
alheias. Essa buceta aqui tem mãe. Ele fez um cara de ódio enquanto enroscava
bem devagar o vidro da bebida azul que tínhamos acabado de tomar. O olhar ficou
mais agudo e no que ele mordeu os lábios com força a mão veio direto no meio da
minha cara. Em cheio. Um tapa. Era isso que você queria a noite toda, não era?
Os dois outros vieram pro meu lado, perguntando se eu estava bem. Que é isso,
cara?! Pra que isso? É o que ela queria, vocês não perceberam? Ela me provocou
a noite toda. Estava esperando o quê? Minha boca ficou fechada. Meu corpo
esquentou por dentro e eu só queria ter uma arma. Só isso. Sairia atirando em
todos ali. Mas eu me senti vencida. E pensei em ti. Mas nem deu muito tempo pra
pensar muito pois quando olhei para o lado vi você saindo de um corredor escuro
e o poeta menor vinha atrás, cabisbaixo e atônito. Quando você chegou perto,
notei que o seu nariz estava sangrando. Vamos embora daqui. Quero ir embora
daqui, você não parava de repetir. Vamos embora. Me leve embora. Eu quero ir embora
daqui. Você me leva. Vamos.
Mesmo que estivesse escuro dentro
do bar, lá fora o dia já estava amanhecendo. Saímos abraçadas e cambaias;
andamos umas duas quadras em silêncio até um ponto de táxi. Você soluçava. Eu
não sabia muito o que pensar ou o que dizer – nunca soube o que aconteceu com
você enquanto eu estava com o barão e com os outros dois; e nem contei a você
que o barão tinha me acertado um tapa em cheio no meio da cara. O táxi parou em
frente ao teu prédio; você se despediu chorosa, a maquiagem derretendo no rosto
branco. Depois eu segui no mesmo táxi pra minha casa. Minha cabeça pesava num
canto da janela. Meu corpo era só cabeça. Ou melhor, eu era A mulher sem
cabeça, como no filme de Lucrécia Martel.
O dia nascia indiferente a toda a
noite anterior. As mulheres caminhavam dispostas para mais uma rotina de
escracho em oito horas dentro de salas de escritórios onde havia assédio;
dentro de bancos, onde havia assédio; dentro de restaurantes, onde o assédio
era frequente; nos cafés, nas praças, as travestis e as prostitutas, muito
assédio; em suas casas, em suas cozinhas, as mães eram assediadas por seus
filhos e filhas e por seus maridos; as estudantes, nos cursinhos
pré-vestibulares, e no ensino fundamental; as meninas, no pátio da escola; diariamente,
assédio; nos hospitais, doentes e enfraquecidas, em coma, sedadas e assediadas;
nas revistas masculinas que serão folheadas por mãos urgentes que puxarão o pau
de dentro das calças para bater uma punheta nervosa num intervalo do trabalho,
num intervalo da aula, num intervalo do dia, como o papai ensinou que um homem
deve fazer, foder muitas bucetas gostosas até a última gota; nas entrevistas
para emprego; nas escolas, quando as pedagogas pedem às professoras cansadas
que estas devem ter mais controle de turma, assédio de mulheres contra mulheres;
nos programas de televisão, meninas, mulheres e meninos assediados sem piedade;
quando entram em suas casas, sozinhas, e tiram toda a roupa suja da noite e
ficam nuas diante das janelas, chorando, se sentindo sem sorte no mundo, e
deixam a roupa afundar no fundo da máquina, jogando muito sabão e enchendo tudo
de água, depois ficam vendo a roupa girar; e quando a namorada ou o namorado
pedem pra elas usarem pouco decote e pouca maquiagem, assédio escrachado; e o
corpo nu, despejado dentro do dia, com as memórias todas ainda girando na
cabeça; tentar limpar; entrar no chuveiro, deixar a água escorrer, deixar tudo
limpo, esquecer, não falar, não comentar, silenciar; matar dentro do corpo o
que mata o corpo.
Até o próximo assédio.
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